Era um costume de origem européia medieval, muito comum nos núcleos rurais do Brasil desde meados do século XIX. Antigamente, logo após o “carnaval”, havia um período de resguardo, nenhuma festa durante a “quaresma”, que começava na “quarta-feira de cinzas e terminava no “domingo de páscoa”. Um período de 47 dias sem nenhuma festividade. Somente nos sítios e fazendas é que eram feitas práticas propiciatórias da “quaresma” com grupos de homens, mulheres e crianças que faziam orações e cânticos para as almas sofredoras. Eram os “recomendadores” que saiam à noite, indo de casa em casa, onde ao som da viola, com o acompanhamento de matracas, cantavam e rezavam para os santos e as almas do purgatório. Ainda hoje, com menor intensidade, é praticada em muitas comunidades rurais deste país.
O ritual de penitência em sufrágio das almas do purgatório existiu por aqui. Resistiu até o último quarto do século XX. Era cultuado em quase todos os bairros. É certo que já faz muito tempo e, hoje, os poucos participantes que sobraram falam da recomenda com emoção e saudades. A respeito da cerimônia, ouvimos o sr. Antônio de Arruda, respeitável conterrâneo, um pouco antes de seu falecimento. Disse que “nasceu na Serrinha, mas, com pouco mais de um ano, mudou-se com os seus pais para o bairro dos Arrudas, onde cresceu, formou a família e viveu, praticamente, até os últimos dias. Ali aprendeu a ler e escrever e foi iniciado no trabalho da lavoura pelo pai. Recebeu educação rígida, baseada em princípios cristãos, com muito respeito à família, honestidade e justiça. Praticou sempre a caridade, a solidariedade e tornou-se líder do bairro. Além de “inspetor municipal de estradas” foi também “inspetor de quarteirão” por diversas vezes. Participou, ainda, de política, mas não quis ser vereador, pois achava que não tinha “leitura” suficiente. Casou-se com Olívia, moça do bairro, da Família Firmino Correa. Cantou “cururu”, jogou muita “bola”, dançou bastante fandango e perdeu o número de “guardamentos” que participou. Católico praticante, ajudou muitas pessoas. Lembrou, emocionado, das recomendas que fez por mais de trinta anos. Na época, bastante idoso, com quase noventa anos de idade, viúvo, vivia com os seus familiares na cidade”.
Contou ainda que “a recomenda pelas almas do purgatório, das crianças inocentes e dos peregrinos” já havia no bairro muito antes dele ir ali viver. Ouviu na sua infância muitos comentários sobre outras penitências feitas, antigamente, com cantorias acompanhadas de viola e reza. Quanto à recomenda, era celebrada durante a quaresma, às quartas e sextas-feiras à noite e terminava na semana santa. O costume era seguido em muitos bairros. Eram formados os grupos de penitentes, geralmente de 5 pessoas com funções definidas, para os cânticos e orações. Escolhidas as casas a ser visitadas, saiam lá pelas 10 horas da noite. Havia sempre muitos acompanhantes e o regulamento era rígido. Disciplina e ordem, muito silêncio e respeito marcavam a passagem dos participantes. Não podiam mexer nas coisas das casas visitadas, não avançar no pomar, principalmente; não fazer algazarra; caso contrário eram eliminados do grupo.
Ao chegar, se faziam anunciar pelo barulho da matraca e do “vum vum” (conhecido também como berra-boi ), um cordão com pedaço de madeira na ponta e que girado, rapidamente, provocava forte zumbido, quando eram recebidos na porta pelo dono da casa e membros da família. As luzes eram então apagadas e começavam as cantorias e rezas. O ato durava, mais ou menos, meia hora. A abertura era com o cântico: “Acordai Irmãos das Almas, acordai se estás dormindo, prá reza um Padre Nosso, prás almas dos peregrinos“. Encerrado o trabalho religioso, eram convidados para tomar café, servido com pão, bolos (de fubá ou de amendoim) e às vezes com pipoca. Dali, seguiam para outras casas e assim por diante até completar o número estabelecido de visitas. Chegavam a visitar até 9 casas por noite e, no último dia da quaresma, na sexta-feira santa, eram obrigados a visitar 25 moradias. Lembrou que, como convidado, chegou a fazer recomendas com seu grupo no bairro dos Florentinos. Outros bairros visitados: Ferreiras, Marianos, Buenos e Carrascal”.
Ouvimos outros participantes para entender e melhor fundamentar o tradicional costume: Mantino da Serrinha, Orestes Teles, Zezinho Paes, Olívio Mariano, João Guarda, Cassiano Ruivo, Valter Barbeiro, Orlando Soares e João Emílio – e todos falaram de suas experiências, das cerimônias em outros bairros, das curiosidades e das pequenas confusões que às vezes aconteciam durante o ato, mas, todos, destacaram que mesmo com os imprevistos, sempre havia respeito e companheirismo.
Bairro dos Ferreiras: Isaias de Arruda, Antônio de Oliveira, Zé Alegre Velho, Zé Alegre Moço, João Ferreira (violeiro) ( os mais antigos);
Bairro dos Fogaças: Neroso Pai, Lazinho Neroso, Zé Neroso, Chico Neroso, Elias Neroso, João Bentinho, Chico Vaz, Zezinho Paes;
Bairro da Serrinha: Luiz Napolitano (filho de Carmo Napolitano), Amantino Domingues (Mantino), Manoel Martins de Almeida e a mãe Maria Vicente, Pedro Sebastião de Jesus, Lazinho José Gregório, Felisbino da Silva;
Bairro dos Arrudas: Antônio de Arruda, José Antônio de Arruda, Claudino Ferreira, Antônio dos Reis, João Correa (violeiro), Benedito Vieira, Minguinho Firmino, Durvalino de Arruda: Bairro dos Marianos: Manoel Silva, Antônio Roque, Zé Roque;
Bairros do Varjeão e do Rio Bonito: Zé Mestre (violeiro), Napoleão, Zé Ruivo, Orestes Teles e a mulher Doralina, Carlino Fidelis, França Teles, Olívio Mariano, João Candido, João Guarda, Cassiano Ruivo, Luiz Sartirio, Oraci Ruivo, Antônio Ramos, Paulo Teófilo, Ido Teófilo,Toninho Buava (violeiro), Orlando Soares. Quim Feliciano, Lazinho Feliciano, Benedito Feliciano, Indalécio Feliciano, Laurindo Feliciano, Augusto Mariano e sua mulher Dolária, João (Nera) Dias da Silva, Delfino (Nera) Dias da Silva, Raimundo da Cecília (violeiro);
Bairro da Serra do Amaral: Marcílio do Deolindinho, Dório Leme, Emílio da Bernarda, Raul Pinto, Batista (violeiro) e a mulher Ondina, Amauri Arruda, José Conceição, Anísio de Oliveira, João Emílio e a irmã Maria Madalena, Acácio Bernardo, Salir Pinto, Servino Cunha, Lazinho Cunha, Francisco Cunha, Antônio Cunha, Quinzinho Feliciano;
Bairro dos Polis: Tó Cláudio, Noel Cláudio, Zeca Cláudio, Lindolfo Quintiliano, Orestes Teles e a mulher Doralina, Mingo Ruivo e a mulher Enedina, João Albino;
Bairro dos Mirandas: Antônio Honorato, Salvador Maria de Arruda, João Sebastião, Paulina (mulher de Elias Maria de Arruda);
Bairro dos Cletos/ Nunes: Ditinho Campina, Pedrinho Campina, Nicanor Carro;
Bairro do Saltinho: Membros das Famílias Arruda, Correa, Cláudio e Holtz;
Bairro das Partes: João Rosca ( do Durvalino de Arruda ), um dos últimos.
Outros participantes na cidade: Lazinho Diniz. Valter Barbeiro, Dito de Arruda, Chico de Arruda, Tonho de Arruda, Vitorino de Arruda, Toninho Bueno, Cassiano Ruivo, etc.
Infelizmente, o levantamento completo dos primeiros participantes, na cidade e nos bairros, é praticamente impossível pelo tempo decorrido e, principalmente, pela falta de registros. Com certeza muitos nomes de peso foram omitidos na pesquisa, mas fica clara a intenção de resgatar o maior número possível de nomes. O sr. Orestes Teles, hoje com idade bastante avançada, nos contou já há algum tempo que cantou a recomenda no bairro do Varjeão e, também, no bairro dos Polis. Cantou junto com a esposa Doralina e, também, com a Enedina, mulher do Mingo Ruivo, elogiando a atuação feminina. Eram vozes fortes, bonitas e afinadas. Noutros bairros, como: Rio Bonito, Serra do Amaral, Mirandas e Serrinha, também houve a participação de mulheres. Conversando com moradores do bairro dos Mirandas, contaram que Paulina, mulher de Elias Maria, chegou a cantar a recomenda junto com Antônio Honorato, ambos, já bastante idosos, um fato curioso, inesquecível e que entusiasmava os participantes. Na cerimônia de recomenda das almas os tradicionais cantos populares folclóricos da quaresma eram entoados pelos participantes, cujos grupos eram formados por homens e mulheres que saiam a cantar, de casa em casa, noite adentro, orações aos santos e às almas. A comemoração solene dava bastante conforto espiritual aos moradores dos sítios e fazendas.
Foto: “Recomenda das Almas é Tradição Cultural e Religiosa de Tatuí” em http://g1.globo.com/sao-paulo/sorocaba-jundiai/nosso-campo/noticia/2015/03/recomenda-das-almas-e-tradicao-cultural-e-religiosa-de-tatui.html
Júlio Manoel Domingues
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