Conversando, há muito tempo, com o conterrâneo Amauri dos Reis sobre as salas de cinema de São Paulo, ele me disse que no “Cine Ouro” havia um pianista que tocava antes do início das sessões noturnas e que o mesmo era de Porangaba. Chegou a conversar com o artista e o ouviu tocar numa daquelas sessões. Fiquei de investigar, mas nada encontrei, porém contando com a ajuda do José Eduardo Gorga, seu parente, que me enviou um texto publicado na revista Veja, edição de 1971, com foto de Teo Gomes, inclusive, foi possível identificar o músico Francisco José Gorga como o último pianista de cinema na capital paulista. Ele nasceu na Bela Vista de Tatuí ( Porangaba ) no dia 28/08/1907. Seus pais: os italianos Luigi Gorga e Pascoalina Pássaro Gorga. Era sobrinho do padre José Gorg, o 1º padre da Paróquia de Santo Antônio de Porangaba.
Os primeiros filmes eram mudos e a projeção feita de trás prá frente; atrás da tela. Durante a sessão era comum ouvir uma orquestra ou um conjunto musical tocar músicas conhecidas, conforme o andamento do filme. Isso acontecia nos grandes centros, enquanto nas pequenas cidades a tarefa cabia às bandas de música. Com o tempo, para tornar o cinema mais atraente, as distribuidoras passaram a mandar partituras musicais, junto com os filmes, escritas para que certos trechos da fita se tornassem mais emocionantes. O tempo passou e com o cinema “falado”, as orquestras foram substituídas e sobraram os pianistas. Eram músicos contratados que tocavam antes do início das sessões, principalmente nos cidades grandes como São Paulo e nas maiores salas. É ai que entra o último pianista de cinema na capital paulista e que, para nossa surpresa, era porangabense.
“… Os músicos de cinemas, que acrescentavam algo aos filmes mudos ou distraíam a platéia nos intervalos, foram tocar em rádios, bandas ou cabarés. Alguns – como Heitor Vila-Lobos e Ernesto Nazaré – saíram de lá para a glória. Outros mergulharam no anonimato eterno. Mas, no início dos anos 70, pelo menos um, no centro de São Paulo, ainda emitia seus sons e todas as noites, antes das sessões de 20 e 22 horas do cine Ouro, uma voz anunciava: “Senhoras e senhores, boa noite. Este é o único cinema que oferece a seus freqüentadores, alguns minutos de agradável entretenimento musical. E estes minutos agradáveis, o cine Ouro vai agora lhes proporcionar, apresentando ao piano, o renomado professor Francisco José Gorga”. A platéia permanecia muda. O renomado professor entrava em cena e sentava-se ao seu piano Beckstein de meia cauda. O pianista, Francisco José Gorga, paulista de Porangaba, também tinha algo a dizer antes de tocar: “Tenho o prazer de executar para senhoras e senhores assistentes, dois números musicais. Primeiro, uma valsa de Chopin, e depois, em arranjo de minha autoria, “Quero que vá tudo para o inferno”, de Roberto Carlos. Tocava, a platéia aplaudia e começava o filme. O ritual se repetia desde 1964, quando o cine Ouro (1700 lugares) passou por uma reforma que lhe deu a aparência de um prédio colonial, decorado com motivos de Ouro Preto. Ostentava imitações de estátuas do Aleijadinho, vigas de madeira no teto, lembrando construções antigas, tapetes grossos e cópias de janelas e portas dos antigos sobradinhos mineiros. No início dos anos 70, mesmo sendo um dos cinemas mais baratos da cidade e geralmente apresentando reprises ou filmes de classe B, o cine Ouro ainda tinha um toque de nobreza – o gerente estava sempre de smoking – apropriado para a cerimônia de um número musical ao vivo. O professor Gorga se sentia bem ali. Estudou na Itália, enfrentava o público desde 1925, ano em que tocou pela primeira vez, no cabaré Scala, passando, também, por teatros e rádios de vários estados brasileiros. Para ganhar os “900 cruzeiros” mensais que o cinema lhe pagava, tinha versatilidade bastante para tocar de tudo (mas sempre de acordo com o filme em cartaz) e paciência de sobra para saber que nem sempre gostavam dele. “Chega!”, gritou-lhe uma vez um espectador, entre um número e outro. “Mas que bela educação!”, desafiou o pianista. A platéia aplaudiu. E ele tocou mais uma vez. Foi o único incidente que o envolveu em anos. “O público que me escuta não tem obrigação de bater palmas. Mas, se escuta, é porque tem algum sentimento em relação à música e por isso nos entendemos quando toco”, disse o pianista. Alto, grisalho, terno bem talhado, unhas bem feitas, Gorga falava com a voz polida dos grandes cavalheiros. Ele era fiscal de conservatórios da “Comissão Estadual de Música” e, além de piano, também ensinava violoncelo, harmônica, violão, clarinete e pistão. Escrevia muito em jornais, mas gravou muito pouco (uma única composição sua “Choro em Lá Menor”, em 1946). Ele não parecia muito preocupado com sua posteridade. Casado, pai de um filho, só lamentava que o ensino de música, que ele analisou em muitos artigos, era muito fraco no Brasil. Glória? Não fez parte de suas ambições. Fortuna? Também não. E aplausos dos freqüentadores do cine Ouro? De modo algum. Solitário na sua profissão, último representante de uma espécie extinta, sabia exatamente até onde ia a sua arte: “Toco para uma única pessoa ou para uma casa lotada. Na verdade, eu toco sempre para mim mesmo”.
Júlio Manoel Domingues
O conteúdo dos links está em formato PDF. Se você não possui o Acrobat Reader,
clique aqui para fazer o download gratuito.