“ … os bois se acostumavam com o trabalho e até a cantiga do carro parece que os confortava. Ao clarear o dia eram atrelados às cangas sem nenhuma dificuldade; à tarde, quando soltos, permaneciam acomodados ao lado do carro, afadigados. Os bois emparelhados ao timão eram apontados como bois de coice e eram estes os que sustinham o peso frontal do carro; as outras juntas atuavam como tração, sendo que a da frente era chamada junta-guia. O meu pai seguia a pé, falando e instigando os bois, principalmente na subida e, quando entrava num declive, ele ia à frente da junta guia, andando para trás, tolhendo e retardando as passadas dos animais, pois o carro-de-boi é diferente dos outros veículos de tração animal, como as carroças: o carro não possui breque”. (Fonte: Hélio Holtz em “Sarapuí – Sua História e Seus Antepassados”, página 41, citando o carreiro Pedro Rafael da Silva).
Segundo os cronistas do “tropeirismo”, pelos antigos e mal conservados caminhos já haviam passado primeiro as tropas de muares e, depois, vieram os carros de boi. Foi, sem dúvida, o primeiro veículo que sulcou a terra virgem deste imenso país, sendo utilizado tanto na “paz” como na “guerra”. Desde muito tempo veio cortando as estradas, apesar do progresso alcançado pelos veículos de transportes. Hoje, nas regiões mais distantes deste imenso país, ainda é possível ouvir, ao mesmo tempo, os gemidos dos carros de boi e o ronco dos motores dos caminhões. Os carros eram construídos inteiramente de madeira, inclusive as rodas, e os seus eixos “cantavam” (pela fricção do eixo no mancal) quando passavam pelas estradas. Os condutores eram os carreiros, homens decididos e fortes que enfrentavam os perigos e as intempéries, cuidando pacientemente das cargas pesadas e dos animais. Os carros de boi eram os “caminhões” de antigamente. Transportavam de tudo e uma viagem para Tatuí chegava a durar, contando a ida e a volta, três ou quatro dias. Levavam algodão e cereais e traziam mercadorias diversas para as vendas.
Hoje, praticamente, não mais existem carreiros por aqui; são exceções. Recentemente, ouvimos os primos: Lázaro Miranda e Nicanor do Valêncio, já idosos, beirando os noventa anos, que falaram com saudades das passagens que tiveram com seus pais e das experiências com seus carros de boi. Começaram a trabalhar muito cedo e contaram fatos pitorescos e curiosos. Citaram, inclusive, os nomes dos bois (com muito carinho) e até dos artesãos fabricantes dos carros, não esquecendo dos Albuquerques (alcunhados de Carros) e, também, do último artífice que foi o Lazinho Nunes.
O Lázaro, o mais emotivo, sonha, ainda, em colocar o carro de boi todo enfeitado pelas ruas da cidade, nos eventos festivos, acompanhado da banda de música, para mostrar ao povo de hoje o veículo que transitava pelas estradas antigas. Disse que começou muito cedo com o seu pai, aprendendo a domar animais e, com 14 anos de idade, já tinha o seu “carrinho de boi”, que, na realidade era puxado por “bodes”. Foi a grande sensação, quando, anos atrás, na tradicional festa de Santo Antônio, desfilou pela cidade com uma “caprichada” carga de lenha doada ao santo padroeiro. O mesmo aconteceu com o primo Nicanor, cujo carrinho era puxado por carneiros. Contou, ainda, orgulhosamente, que trabalhou como carroceiro na construção do prédio do ginásio, na gestão do prefeito Mário Nogueira, transportando água para a obra. Não existia a água encanada. Foi um enorme desafio, mas compensado ao ver a escola funcionar tempo depois e de ter uma de suas filhas formando-se professora na primeira turma. No dia da formatura preparou uma surpresa, pois quando o cortejo que trazia as novas professoras entrou na rua principal, na direção da igreja, quebrou o protocolo e colocou o carro de boi à frente para guiá-las, numa singela homenagem que os pioneiros – tropeiros, carreiros e carroceiros – certamente fariam em regozijo pelo desenvolvimento educacional e cultural de Porangaba. Descreveu os serviços que os carreiros faziam: o transporte de toras de madeira, café em coco, cereais, algodão e cargas diversas, dos locais mais longínquos do município para a vila e até, mesmo para Tatuí e Conchas.
Alguns nomes dos Carreiros de Porangaba: João Mathias de Oliveira (João Carreiro); Guilherme; Luiz, Manoel e Martinho Liberto; o velho preto Guambi; Dito Gica; Zé Napo; Zeca Lagarto; Felix (Felício) Soares, Clemêncio Pinto e o filho Oraci; João Liberto e Dorival; Antônio Miranda e os filhos Lázaro e Chico; Chico Juvêncio; Zé e Amador Tereza; Cipriano; Zé Venâncio; Luiz Moura; Elias Moura; Bino, Lau, Nézio, Zeca e João Lenheiro – os Canhambora; João Garcia; Manoel Lemes; Rodolfo Vicente; Doro Lemes; Antônio Indalécio; Emídio Lemes; Lazinho Nunes; Luiz Boqueirão e o filho Nicolau; Carmelo, Tico Alfredo; Leopoldo; Ramiro; João Valeiro; Nor Brando; Zé Neco; Nestorzinho Toureiro; Miguel de Campos; Nego da Galarda (na fazenda do Camilo de Moraes); Zé Quinzote (na fazenda do Chico Costa); Joãozinho Vaz da Mina; Chico e Nicanor do Valêncio e outros.
Carreiros e proprietários de carros-de-boi cadastrados na Prefeitura Municipal de Porangaba em 1930: Simão Antônio de Oliveira, Cesário Bueno de Campos (ou Camargo ), João Luiz de Paula, Faustino Nunes da Silva, Lázaro Nunes da Silva, Antônio Alves de Oliveira, Manoel Rodrigues Proença, Benedito Fogaça Leite, Vicente Pires Paulino, Luiz Antônio de Oliveira, Elias Lopes de Moura, Laurindo Antunes Rodrigues, Joaquim Paes de Camargo, Francisco Soares Bueno, João Antônio Luiz, Francisco Ribeiro da Silva, Teodoro de Oliveira Bueno, José Vicente Silva, Francisco Xavier da Costa Júnior, Honório Lopes Cardoso, Antônio Gabriel de Almeida, João Lemes da Silva, Francisco Gabriel de Almeida, Teodoro Manoel de Proença. Dorival Manoel Rodrigues, José Fabiano de Almeida, Claudiano Alves Barreto, Joaquim Rodrigues Lima, Paulino Mariano Leite, Joaquim Vicente de Miranda, João Francisco Silva, Clemêncio Pinto da Silva, João Antônio Soares, Vitorino Manoel Pereira, Marcolino José Vaz, José Marciano de Almeida, João Rufino da Silva, Joaquim Cubas de Miranda, Luiz Manoel Proença, Artur Pires, Hygino Antônio Rodrigues, Antônio Justino da Silveira, Francisco Glycceris de Arruda, José Mariano Correa, Antonio Manoel de Miranda, João Nuchera ( Carmelo).
Foto: “Carro de Boi”, autor desconhecido, acervo pessoal.
Júlio Manoel Domingues
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